quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Microcrédito por Renda Básica Garantida

Desde nosso primeiro relatório sobre a renda básica de cidadania na comunidade de Quatinga Velho, já havíamos aventado a possibilidade de trabalhar a renda básica em conjunto com o microcrédito. O fato de algumas famílias terem aproveitado a renda básica como se fosse um microcrédito indicara esta possibilidade.
No anexo ao primeiro relatório da RBC já proporíamos o que viria a ser o Banco Social: microcrédito e renda básica em simbiose. A renda básica provendo a demanda e o microcrédito a atendendo, e vice-versa. Propondo ainda a moeda social como potencializador deste ciclo de desenvolvimento para emancipar da comunidade. Culminando no momento em que a comunidade teria condições de bancar sua própria rede de seguridade, ou especificamente, pagar a renda básica para todos na comunidade com o rendimento de suas próprias economias.
Próximo de completar 3 anos de projeto a tendência permanece. Agora que finalmente conseguimos capitalizar o fundo que garantirá a provisão da RBC em QV podemos enfim aproveitar todo esse potencial fiduciário e introduzir o microcrédito.
Diferente da RBG, o microcrédito já tem uma base teórico-experimental razoável e até mesmo um paradigma consolidado com o Grammen de M.Yunus. O Brasil que já tem inclusive um marco legal estabelecido, que se por um lado regula, por outro também engessa o que talvez seja o bem mais valioso do empreendedorismo: a inovação. Muitas inovações em economia solidária quando não são simplesmente proibidas são inviabilizadas por normas que vão do desnecessário ao contraprodutivo. Vai assim o Brasil perdendo a chance de se livrar dos vícios e idiossincrasias históricos ligados às burocracias e autocracias.
Entretanto não nos percamos nestas regras, nem fiquemos nos lamentando. Sem segui-las nem desobedecê-las apenas empreendamos. Neste sentido, o que apresentaremos aqui talvez não seja exatamente aquilo que se costuma referir pelo termo microcrédito, mas é em essência, finalidade, moralidade, perfeitamente condizente com o espírito e da economia solidária e das microfinanças. E pode ainda sim ser classificado como microcrédito, se este for definido como:
• O crédito de pequena monta;
• de juros baixos;
• dirigido às pessoas que não tem acesso ao sistema financeiro tradicional por não possuem capital, ou sem efemismos, os pobres.
Nossa proposição se encaixa nesta definição. Contudo durante nossa experimentação não aplicaremos os juros. Embora haja arranjos legais onde essa aplicação seria possível, tal engenharia jurídica por si nada agregaria a nossa finalidade social, enquanto a ausência de juros (ou juros = zero) embora seja um grave obstáculo à sustentabilidade do empreendimento, não o é da experiência e da replicabilidade do modelo, lembrando que existe outras exemplos a serem estudados para recompor ou ampliar o capital que não necessariamente passam pelo instrumento dos juros, vide as finanças islâmicas por exemplo.
Isto posto, vamos à proposta:
O microcrédito que será disponibilizado não se dará propriamente como um empréstimo, mas sim como uma espécie de adiantamento de n parcelas da renda básica que já são pagas mensalmente dentro de comunidade segurada por uma renda básica garantida, no caso, Quatinga Velho. Tais parcelas serão restituídas automaticamente durante o pagamento das rendas básicas conforme valor definido pelo próprio tomador do adiantamento ou empréstimo, empregando uma parte da renda básica a ser paga.
Embora esse capital advenha do pagamento de um direito, não deixa também de ser um credito concedido. Em razão de:
• Não ser um valor concedido do indivíduo para si mesmo, mas da comunidade para o indivíduo. De A para B.
• Não estar o montante a ser restituído indexado ao valor da renda básica. Seu montante pode ou não corresponder ao valor de um adiantamento da renda básica no período da duração da sua restituição. Ou seja o indivíduo deve x reais e não x rendas básicas.
Contudo há um diferencial, positivo em relação ao microcrédito convencional a insolvência e possibilidade de inadimplência é anulada pela própria renda básica garantida. A pessoa tem na própria renda básica a garantia de que terá as condições de pagar pelo empréstimo, dada a natureza incondicional da renda básica.
Mas há que se ter cuidado. Pois se isso por um lado isto elimina a inadimplência e a pressão da comunidade, por outro se abre a possibilidade do tomador se ver durante o período de pagamento privado de uma percentual importante de sua renda básica.
Tal situação deve ser evitada, mas dentro dos princípios da eficiência, economicidade e liberdade individual. Por isso neste primeiro experimento do microcrédito através da renda básica decidimos implementar um concessão gradual com restituição de médio e longo prazo, isto é, partindo de valores baixos, pagos em parcelas igualmente baixas que comprometam o menor montante possível da renda básica no período. Este “menor montante possível” significa uma restituição que não comprometa a finalidade da renda básica e que ao mesmo tempo seja um capital suficiente a finalidade do microcrédito. Seja esta finalidade a quitação de uma divida com juros abusivos, um pequeno empreendimento, ou mesmo a compra de um produto ou serviço que o tomador deste microcrédito necessário.
É preciso ainda levar em consideração o longo período que uma restituição de pequena monta pode implicar para recompor o capital para novos empréstimos. Pois embora não seja um problema capaz de inviabilizar o sistema, pode torná-lo reduzir sua eficiente na finalidade do desenvolvimento socioeconômico. É portanto uma questão de velocidade de circulação, para a qual adotamos solução símile aos dos sistemas livres, já testada na Brinquedoteca e Biblioteca livres. Nestes sistemas aceleramos a restituição, neste caso a quitação do empréstimo, não pela ameaça de punição, mas sim pelo estímulo a continua reutilização da oportunidade disponível, abrindo a possibilidade de contrair um novo empréstimo imediatamente após a quitacao de um anterior.
Claro que onde existe a cobrança de juros, a quitação do empréstimo já é estimulada pela própria eliminação deste. Porém a possibilidade de adquirir um novo empréstimo de maior monta, ou mesmo o simples fato de poder acessar novamente o crédito, é por si só um estímulo mais do que suficiente para que se quite o empréstimo o mais rapidamente possível.
Ademais tal possibilidade de quitação aumenta em decorrência do próprio incremento do capital gerado a partir do microcrédito. Isto ocorre evidentemente no microcrédito produtivo, mas não exclusivamente neste modelo. Conforme observamos em Quatinga Velho, mesmo um microcrédito aplicado em um bem de consumo, como uma TV, ou um computador, pode representar não só a médio e longo prazo em crescimento das possibilidades socioeconômicas da família, mas também a curto prazo, a medida que o acesso a muitos bens de consumo também aumentam indiretamente as oportunidades e possibilidades produtivas do indivíduo e da comunidade.
Tal incremento não pode ser deduzido diretamente a partir de um estudo particularizado, linear e reduzido. Mas isso não é razão para eliminar essa possibilidade de desenvolvimento do programa. Embora torne evidentemente mais complexo o planejamento do programa de microcrédito ter que trabalhar com tais variáveis, é possível contornar essa dificuldade priorizando os microcréditos não só de menor monta, mas cuja possibilidade de quitação mais rápida sejam mais evidentes.
Deixando-nos abertos para trabalhar durante a experiência com a hipótese de que em sistema de microcrédito que envolve maior numero de empréstimos, o retorno possa ser maior se não condicionado a uma única tipificação de crédito. Talvez não apenas a multiplicação dos beneficiados, mas uma maior diversidade em suas finalidades possa produzir um conjunto muito maior de oportunidades aproveitadas em relação a outros modelos em que as finalidades de créditos concedidos são reduzidos a tipificações enumeradas e controladas.
Assim a preferência pelos denominados microcréditos para produção dentro do programa se darão neste momento pelas limitações dimensionais do sistema, e do reconhecimento de nossa impossibilidade para efetuar o cálculo complexo de previsão das reais possibilidades desenvolvimento da economia local com a diversificação dos microcréditos.
Ademais é possível que tais cálculos sejam não apenas dispensáveis, mas menos efetivos diante de critérios, simples, não-arbitrário e o mais importante: entendidos como justos pela comunidade conforme deliberação democrática. Neste sentido como critério ainda mais simples de elegibilidade, ou melhor, prioridade para o empréstimo, dado que o montante é limitado, sugerimos a adoção do critério mais fácil de ser entendido, aplicado e controlado por democracia direta. Nesta primeira fase do microcrédito iremos priorizar:
i. os microcréditos de menor monta - que salvo exceções atenderiam justamente a sua finalidade, atendendo quem menos têm e proporcionalmente mais precisa. Gerando ainda um retorno mais rápido sem comprometer o orçamento da família.
ii. como critério em eventual desempate: os microcréditos quitados em menos tempo.
Já a preferência, ou melhor prioridade na concessão de novos créditos aqueles que já quitaram seus empréstimos, se dá não apenas como estímulo ou reforço para uma quitação imediata visando reduzir o tempo para recompor o capital , mas também como importante processo de educação financeira essencial para modelos que apostam na livre iniciativa e liberdade dos envolvidos.
Da mesma forma que a gradação nos montantes emprestados, partidos dos valores e restituições mais modestas possíveis não é apenas uma questão de preocupação com o comprometimento e privação de uma renda básica já extremamente modesta , mas prudência que funciona como processo pedagógico - não precisando contar que todos saberão de imediato lidar com o microcrédito. Aqui cabe uma advertência: talvez essa precaução seja absolutamente desnecessária e sejamos mais uma vez surpreendidos pela responsabilidade e capacidade inatas das pessoas (como já o fomos com os sistemas livres e a renda básica). De qualquer forma ao longo do projeto podemos flexibilizar e até mesmo eliminar essas regras se assim se não se mostrarem efetivas.
É importantíssimo frisar que não estamos partindo do princípio de que pessoas não são capazes de identificar, planejar e aplicar adequadamente esse crédito de modo a não passar por condições adversas, mas admitindo a possibilidade que quem jamais teve chance de apreender com a melhor escola que existe, a experimentação, precisa de espaço para aprender com suas tentativas e erros. Processo de desenvolvimento de um potencial natural que antes de tutores precisa de oportunidades para o aprendizado.
Assim, ao partir de montantes e restituições de baixa monta, procuramos reduzir o possível impacto de um microcrédito que mal aplicado pelo tomador não dê um retorno esperado ou mesmo nenhum, de modo que mesmo o erro possa ser absorvido sem prejuízos materiais ao indivíduo, ou ao seu processo de educação financeira. Afinal, de qualquer forma o empréstimo será quitado no prazo original, abrindo nova oportunidade para uma tentativa dentro dos mesmos patamares ou, conforme o entendimento advindo da experiência, em níveis até menores de comprometimento do orçamento.
O conceito é prover um sistema de crédito onde a confiança e iniciativa não seja prejudicada pelos inevitáveis tropeços, e que ao mesmo tempo se constitua em um processo no qual é o tomador de empréstimo que recebe e sente as conseqüências deste processo em um nível adequado as suas condições socioeconômicas e psicológicas, desenvolvendo assim a responsabilidade e preparando-se de fato e naturalmente para assumir compromissos maiores. A isso entendemos como o próprio processo de aprendizado envolvido no programa: a educação como desenvolvimento de potencialidades latentes ou até mesmo bloqueadas pela falta de oportunidade. Oportunidade de aprendizado não apenas para o indivíduo que toma o microcrédito, mas para aquele que o fornece.
Aqui novamente aplicaremos o princípio da democracia direta. Decisão aplicada não na escolha de quem deve ou não deve receber o empréstimo, mas dos níveis de crédito e, sobretudo de um questão importantíssima: o crescimento do capital disponível para o microcrédito. Tudo isso poderia ser facilmente resolvido com o juros conforme deliberação democrática da comunidade, seja com níveis iguais, equitativos, progressivamente menores ou mesmos maiores. Lembrando que neste modelo os juros não são uma “compensação ou recompensa pelo risco”, mas sim um excedente dirigido a manutenção operacional do sistema e crescimento do capital disponível ao microcrédito.
Pode-se ser inclusive que tais finalidades descaracterizem esse pagamento excedente como juros. Porém para não nos perdermos em predefinições, adotaremos em princípio a solução de acrescer o capital por doações dos próprios tomadores de empréstimos. Doações que podem inclusive estar baseadas em percentuais do valor emprestado, sendo doadas mês ao mês ou como se fossem parcelas adicionais após a restituição do empréstimo. Comportando-se exatamente como o pagamento de juros, mas não se caracterizando como tal por uma razão muito simples: seu pagamento é voluntário e jamais se configura como uma dívida ou compromisso de contribuição disfarçado.
O que não impede que a comunidade entre em acordo para que todos contribuam com valores iguais ou equitativos para esse fundo de microcrédito, atrelado ou não aos empréstimos, o que equivaleria neste segundo caso a uma espécie de contribuição associativa para o microcrédito . Ninguém sendo obrigado a contribuir, mas não tendo também a associação o compromisso de emprestar para quem não contribui, ou seja, mutualismo.
O importante aqui será o trabalho informativo. Dado que o crescimento do volume disponível do microcrédito é do interesse dos próprios usuários, a contribuição voluntária é perfeita viável porque condiz aos interesses particulares de cada um na medida da compreensão do fato que o aumento do microcrédito disponível depende da própria de todos. Aqui cabe novamente um paralelo com a Brinquedoteca e Biblioteca Livres, que num dado momento passou a receber doações dos próprios usuários. É obvio que isso não aconteceu em virtude de nenhum cálculo racional utilitarista, mas sim de impulso ou instinto de solidariedade ou mais precisamente de reciprocidade ou gratidão inerentes não apenas ao seres humanos, mas a todos seres vivos dotados de inteligência suficiente para tanto .
Em suma a renda básica não apenas serve de calção e capital para o microcrédito , mas como fonte geradora da demanda a ser atendida pelos microempreendimentos emergentes. Note-se que o pagamento de juros poderia propiciar não apenas o crescimento dos montantes disponíveis ao microcrédito, mas uma maior renda básica, inclusive concomitantemente.
Por exemplo: uma família com 10 membros, que recebe por mês uma renda básica de 30 reais por mês, poderia estar precisando de justamente 300 reais para comprar galinhas e materiais para construir um galinheiro e vender os ovos na vizinhança. Ela poderia tanto decidir pagar esse empréstimo deduzindo três reais de cada renda básica durante 10 meses, ou apenas 1 real durante 30 meses, ou em qualquer arranjo possível considerando:
• a disponibilidade de recursos depositados no fundo;
• e as possibilidades de comprometimento de uma parte da somatória das rendas básicas dos envolvidos.
Independente do sucesso ou não do empreendimento a restituição sempre ocorre na pior das hipóteses dentro no prazo combinado, e se as possibilidades da família tiverem sido bem consideradas, sem nenhuma privação. Dependendo ainda do retorno desse microempreendimento, aqui no caso a venda dos ovos, será sempre interessante para o tomador do microcrédito quitá-lo o mais rapidamente, abrindo nova possibilidade para receber o adiantamento, com mais confiança e experiência para talvez tomar valores maiores do que o primeiro.
Note-se que não apenas famílias poderão usar sua renda básica, mas famílias associadas ou até mesmo toda a comunidade, no caso de um empreendimento coletivo, como a compra de um veículo para uso comunitário, a abertura de um poço, a criação de uma cooperativa de consumo ou produção, ou qualquer outro empreendimento que careça ou passa ser realizado em comum acordo por um grupo.
No momento que estes microempreedimentos formarem uma considerável economia local será possível incrementar estes empréstimos no todo ou em parte através de moeda social. Mas isso é próxima etapa que deverá ainda aguardar as primeiras avaliações do resultado do microcrédito por renda básica e os sempre necessários ajustes que só a experiência pode propiciar a qualquer programa.

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